DISPLASIA CLEIDOCRANIANA: RELATO DE DOIS CASOS




RESUMO


A displasia cleidocraniana (DCC) é uma doença rara do osso (1:1.000.000 pacientes), com igual frequência entre homens e mulheres que apresenta um padrão de herança autossômica dominante com alta penetrância e grau variável de expressividade. As principais manifestações da doença são aplasia ou hipoplasia clavicular, aumento exagerado do diâmetro transverso do crânio, com retardo no fechamento das suturas e fontanelas, falange média dos dedos das mãos encurtada, hipodesenvolvimento do terço médio da face, falha na erupção dos dentes permanentes, presença de dentes supranumerários e uma variedade de outras desordens esqueléticas. Os casos apresentados neste trabalho tratam-se de mãe e filha que apresentam as características clínicas e/ou radiográficas desta doença. Os casos relatados mostraram a importância dos exames de imagem e a relevância do cirurgião dentista no diagnóstico da DCC, visto que grande parte das anormalidades ósseas desta doença está localizada no crânio e na face, assim como existe a presença de sérios distúrbios buco-dentais na maioria dos casos.
Palavras-chave: displasia cleidocraniana, radiografia panorâmica, dentes supranumerários, clavícula, dentes permanentes impactados.



ABSTRACT


Cleidocranial dysplasia (CCD) is a rare bone disease (1: 1,000,000 patients), with equal frequency among men and women presenting an autosomal dominant inheritance pattern with high penetrance and varying degree of expressiveness. The main manifestations of the disease are aplasia or clavicular hypoplasia, exaggerated increase in the transverse diameter of the skull, delayed closing of the sutures and fontanelles, shortened middle phalanx of fingers, underdevelopment of the middle face, permanent eruption of the teeth, presence of of supernumerary teeth and a variety of other skeletal disorders. The cases presented in this paper are mother and daughter who present the clinical and / or radiographic characteristics of this disease. The reported cases showed the importance of the imaging exams and the relevance of the dentist in the diagnosis of CCD, since most of the bone abnormalities of this disease are located in the skull and face, as well as the presence of serious oral and dental disorders in most cases.
Key-words: cleidocranial dysplasia, panoramic radiography, supernumerary theeth, clavicle, impacted permanent theeth.



1 INTRODUÇÃO


A displasia cleidocraniana (DCC) também conhecida como Doença de Marie e Sainton, Síndrome de Scheuthauer-Marie-Sainton e Disostose Mutacional (MEHTA ET AL., 2011; BHARTI & GOSWAMI, 2016), é uma doença rara do osso (1:1.000.000 pacientes), com igual frequência entre homens e mulheres
(DASKALOGIANNAKIS, et al., 2006; MACHADO, et al., 2010; ZHU, et al., 2018) que apresenta um padrão de herança autossômica dominante (TANAKA et al., 2006; MACHADO, et al., 2010; MEHTA ET AL., 2011; BHARTI & GOSWAMI, 2016; ZHU, et al., 2018) com alta penetrância e grau variável de expressividade (TANAKA et al., 2006), embora a mutação espontânea ocorra em 20 a 40% dos casos, sem causa genética aparente (TANAKA et al., 2006; MACHADO, et al., 2010).
O termo “disostose cleidocraniana” foi originalmente usado porque se pensava que a DCC envolvia apenas ossos de origem intramembranosa, isto é, ossos do crânio, clavículas e ossos planos. Estudos subsequentes mostraram que os ossos da ossificação endocondral também são afetados e que a DCC é um distúrbio generalizado de muitas estruturas esqueléticas. Portanto, o termo "disostose cleidocraniana" foi alterado para "displasia cleidocraniana" para refletir a natureza mais generalizada da condição (PAN et al., 2017).
A DCC é causada por um defeito do gene Core Binding Factor-α 1 (Cbfa1), localizado no cromossomo 6p21. Este gene controla a diferenciação de células precursoras em osteoblastos (MACHADO, et al., 2010; TANAKA et al., 2006; ZHU, et al., 2018), sendo essencial para a formação do tecido ósseo, tanto endocondral quanto membranoso, podendo estar relacionado com o retardo na ossificação do crânio, pélvis e extremidades na displasia cleidocraniana. (MACHADO, et al., 2010) As principais manifestações da doença são aplasia ou hipoplasia clavicular, aumento exagerado do diâmetro transverso do crânio, com retardo no fechamento das suturas e fontanelas (DASKALOGIANNAKIS, et al., 2006; TANAKA et al., 2006; MACHADO, et al., 2010; BHARTI & GOSWAMI, 2016; ZHU, et al., 2018), falange média dos cinco dedos encurtada (MOHAN, et al., 2010; BHARTI & GOSWAMI, 2016), hipodesenvolvimento do terço médio da face, falha na erupção dos dentes permanentes, presença de dentes supranumerários e uma variedade de outras desordens esqueléticas. (DASKALOGIANNAKIS, et al., 2006; TANAKA et al., 2006; MACHADO, et al., 2010; BHARTI & GOSWAMI, 2016; ZHU, et al., 2018).
A aparência clínica dos indivíduos portadores da DCC é bastante característica. De maneira geral, apresentam baixa estatura e as clavículas podem ser rudimentares ou estar completamente ausentes, permitindo que aproximem os ombros anteriormente até a linha média. Ainda, a face do paciente pode parecer pequena em relação ao crânio em razão da hipoplasia da maxila, assim como dos ossos lacrimais, nasais e arco zigomático; a abóbada craniana é aumentada, com bossa frontal e parietal pronunciadas, além de hipertelorismo e uma leve exoftalmia. (DASKALOGIANNAKIS, et al., 2006; TANAKA et al., 2006; MACHADO, et al., 2010; ZHU, et al., 2018;).
A presença de dentes supranumerários, retardo na esfoliação dos dentes decíduos e a presença de dentes não erupcionados (TANAKA et al., 2006; MACHADO, et al., 2010; ZHU, et al., 2018), combinados com maloclusão severa e sobremordida (ZHU, et al., 2018), são normalmente as principais queixas dos pacientes e o motivo pelo qual procuram auxílio do profissional de saúde (MACHADO, et al., 2010).
Muitos pacientes com DCC têm a seguinte tríade de lesões: múltiplos dentes supranumerários; aplasia ou hipoplasia das clavículas e abertura das suturas sagitais e fontanelas. Essa tríade é considerada patognomônica para o diagnóstico da DCC. Se a tríade não estiver completa, é necessário considerar a possibilidade de outras entidades patológicas no diagnóstico diferencial. Por exemplo, a pseudoartrose congênita é caracterizada pela ausência de uma das clavículas, geralmente a clavícula direita (TANAKA et al., 2006).
O objetivo deste trabalho foi apresentar as características clínicas e radiográficas de dois casos de displasia cleidocraniana na mesma família.



2 RELATO DE CASOS


Caso 1
J.R.S., sexo feminino, 35 anos, feoderma, foi encaminhada à Clínica de Radiologia Odontológica CERO25, Rio de Janeiro, Brasil para realização de radiografia panorâmica e tomografia computadorizada de feixe cônico.
Após a aquisição da radiografia panorâmica notou-se a retenção de múltiplos dentes permanentes e presença de cinco dentes supranumerários (Figura1). Na radiografia de perfil e frontal de crânio, nota-se ausência do osso nasal e fechamento incompleto das suturas do crânio (Figura 2).

Figura 1 - Radiografia panorâmica.

Figura 2 - A. Radiografia frontal de crânio. B. Radiografia de perfil de crânio.

Clinicamente, a paciente apresentava como baixa estatura, aplasia das clavículas (Figura 3), bossa frontal proeminente, hipertelorismo, subdesenvolvimento do terço médio da face (Figura 4) e hipoplasia da maxila.

Figura 3 - A. Radiografia de tórax mostrando ausência das clavículas. B. Vista frontal da paciente com aproximação dos ombros anteriormente em direção à linha média.

Figura 4 - A. Vista frontal da paciente. B. Vista lateral da paciente 1.

Na radiografia de mão e punho foi possível observar a presença de epífises proximais nas falanges proximais, médias e distais de todos os cinco dedos de ambas as mãos, epífises distais nos metacarpos das duas mãos e epífises proximais no metacarpo do primeiro dedo de ambas as mãos (Figura 5).

Figura 5 - Radiografia de mão e punho da paciente 1.

Caso 2 L.S.R., sexo feminino, cinco anos, feoderma, foi encaminhada à Clínica CERO25, Rio de Janeiro, Brasil para realização de radiografia panorâmica. Após a aquisição da radiografia panorâmica notou-se a presença de todos os dentes decíduos na arcada dentária e de todos os germes dos dentes permanentes (Figura 6). Na paciente 2, foi observada baixa estatura para a idade, bossa frontal proeminente, hipertelorismo, e subdesenvolvimento do terço médio da face (Figura 7) e hipoplasia da maxila.

Figura 6 - Radiografia panorâmica da paciente 2.

Figura 7 - Vista frontal da paciente 2.

3 DISCUSSÃO


Os pacientes portadores de DCC geralmente têm uma vida normal, sem maiores complicações médicas. Justamente por esse motivo, o diagnóstico da enfermidade pode ser realizado tardiamente. Como consequência, um quadro complicado pode se apresentar no momento do primeiro exame odontológico, como a presença de múltiplos dentes supranumerários, dentes impactados, erupção e/ou localização ectópica dos dentes, dificultando a obtenção de um tratamento bem sucedido (MACHADO, et al., 2010). Nos casos apresentados, a mãe já com 35 anos de idade, terá o tratamento dificultado. Mas a criança com apenas cinco anos, poderá receber acompanhamento e tratamento no momento adequado, podendo-se esperar uma resposta mais positiva ao tratamento, minimizando a extensão das intervenções cirúrgicas e/ou ortodônticas.
Apesar de rara, o Cirurgião-Dentista pode ser o primeiro profissional da área da saúde a observar e suspeitar da DCC porque normalmente as principais queixas dos pacientes são de origem dentária (MACHADO, et al., 2010).
Nos casos apresentados, a paciente 1 apresentava sinais clínicos e radiográficos característicos da DCC, como baixa estatura, aplasia das clavículas, bossa frontal proeminente, hipertelorismo, subdesenvolvimento do terço médio da face, e hipoplasia da maxila além de retenção de dentes permanentes e presença de dentes supranumerários.
São várias as anomalias que podem ser encontradas simultaneamente em relação às mãos e pés, nos portadores de displasia cleidocraniana. Uma das mais frequentes é a presença de epífises proximais (denominadas pseudo-epifíses) e distais na base dos segundos metacarpos e metatarsos, conduzindo a um excessivo crescimento e comprimento dos mesmos. Também, frequentemente encontrado, é a existência de encurtamento excessivo das falanges distais e das falanges médias do 2º e 5º dedos, conferindo aos mesmos uma aparência cônica. Mais raramente, a presença de clinodactilia bilateral é observada (CHELVAN, et al. 2009;
LOUREIRO, 2015). Em um dos casos apresentados, observou-se a presença de epífises proximais nas falanges proximais, médias e distais de todos os cinco dedos de ambas as mãos, epífises distais nos metacarpos das duas mãos e epífises proximais no metacarpo do primeiro dedo de ambas as mãos.
Na paciente 2, foi observada baixa estatura para a idade, bossa frontal proeminente, hipertelorismo, hipoplasia da maxila e subdesenvolvimento do terço médio da face e em relação aos dentes decíduos, nenhuma alteração foi observada, como malformação, atraso na erupção ou retenções dentárias.
Os primeiros molares permanentes parecem irromper espontaneamente na maioria dos pacientes com DCC, provavelmente em razão da fina camada de tecido ósseo que precisam ultrapassar (MACHADO, et al., 2010). No caso da paciente 1, observamos a presença de três primeiros molares e dos quatro segundos molares na arcada dentária, sendo que o primeiro molar superior direito que está ausente, apresenta o eixo de erupção alterado. Na paciente 2, os primeiros molares apresentam-se semi inclusos e com eixo de erupção correto, sinalizando que o irrompimento acontecerá no momento esperado.
De acordo com a literatura (MACHADO, et al., 2010), os dentes supranumerários permanentes em pacientes portadores de DCC iniciam a sua mineralização quatro anos mais tarde que os correspondentes da série normal. Assim, seria possível o diagnóstico de incisivos permanentes supranumerários em radiografias panorâmicas realizadas aos 5-7 anos de idade. Por esse motivo, segundo os autores, o dentista deveria submeter o paciente, a partir dos cinco anos, a uma radiografia panorâmica anual, a fim de detectar prováveis dentes supranumerários e determinar o momento propício para a intervenção, assim como o tratamento mais adequado para o caso. No caso 1, a paciente apresenta cinco dentes supranumerários, mas como já tem 35 anos de idade, o acompanhamento para avaliar o melhor momento para tratamento não foi realizado. No caso 2, a paciente tem cinco anos de idade, sendo possível o cirurgião dentista que a acompanha, estabelecer o melhor momento para intervir, se houver necessidade. De acordo com a literatura, os pacientes portadores de DCC que apresentaram um ou nenhum dente supranumerário tiveram o maior número de dentes permanentes erupcionados espontaneamente, assim como apresentaram os melhores resultados num menor tempo de tratamento (TANAKA et al., 2006; MACHADO, et al., 2010).
Em relação ao tratamento odontológico dos pacientes com DCC muito se tem discutido a respeito. A terapêutica proposta para as anomalias do complexo dentoalveolar geralmente envolve cirurgia ortognática para corrigir a hipoplasia maxilar, remoção de dentes inclusos, em associação com terapia ortodôntica e/ou protética (DASKALOGIANNAKIS, et al., 2006; MACHADO, et al., 2010; ZHU, et al., 2018). A exposição cirúrgica de dentes permanentes não irrompidos, seguida de extrusão ortodôntica, também tem sido relatada. É consenso entre os autores que a intervenção odontológica realizada no momento mais adequado em pacientes com DCC é crucial para o sucesso do tratamento, e quanto mais cedo o paciente portador de DCC for diagnosticado e tratado, melhores serão os resultados. Portanto, é importante que o cirurgião dentista esteja atento a esses aspectos presentes nos pacientes portadores da DCC, visto que as anomalias do complexo maxilofacial podem ser a principal causa das consultas médico-odontológicas. O tratamento das disfunções causadas por essa alteração esquelética é longo e complexo. Assim, o objetivo de um diagnóstico precoce é proporcionar ao paciente uma melhor qualidade de vida, por meio de uma reabilitação adequada, na qual certamente o dentista terá um papel fundamental.



4 CONCLUSÃO


Imagens radiográficas da face e crânio são importantes ferramentas para o diagnóstico da DCC. Nas radiografias odontológicas tradicionais, é possível observar duas características da tríade clássica: múltiplos dentes supranumerários e suturas abertas e fontanelas no crânio. Outras características que podem auxiliar no diagnóstico (paralelismo do ramo mandibular, subdesenvolvimento dos seios maxilares e dentes permanentes impactados) podem ser observadas em radiografias panorâmicas.
Estes casos mostram a importância dos exames de imagem e a relevância do cirurgião dentista no diagnóstico da DCC, visto que grande parte das anormalidades ósseas desta doença está localizada no crânio e na face, assim como existe a presença de sérios distúrbios buco-dentais na maioria dos casos. A atuação de uma equipe multidisciplinar composta por médicos, dentistas e fonoaudiólogos faz-se necessária para que se obtenham resultados favoráveis no tratamento das anomalias causadas pela DCC, visando sempre ao melhor para o paciente.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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